Reinaldo

Chico E O Segredo Da Folha Seca

Quando foi anunciado que o Prêmio Camões deste ano foi concedido a Chico Buarque, o que no primeiro momento chamou a atenção foi o fato da principal honraria da língua portuguesa ter sido concedida a um músico popular. Parecia que era algo que precisava ser explicado, como se uma fronteira tivesse sido atravessada: da literatura, considerada arte mais sofisticada, para o território da canção, que tem origem e destinação popular.
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Para muitos, foi a evidência de que as letras do compositor podem ser lidas como poesias do mais alto nível de realização literária. Outros enfatizaram que Chico Buarque é também autor de excelentes romances e peças de teatro, portanto com carreira muito ligada à literatura e à língua portuguesa. E houve ainda aqueles lembraram que recentemente o Nobel de Literatura foi dado a Bob Dylan, também um autor de canções.  

A obra de Chico Buarque, ao longo de muitas décadas, tem sido uma espécie de referência para história brasileira. O músico popular não compôs apenas a mais sensível e inteligente trilha sonora dos acontecimentos vividos, o que seria a confirmação de seu ofício. Sua música e poesia são elementos que fazem parte da vitalidade que anima nosso tempo histórico. Além disso, com sua integridade pessoal foi sempre uma baliza ética para os brasileiros em diferentes momentos de suas vidas.

Uma obra tão vasta e sempre tão plena elevou ainda mais o patamar da música popular na vida cultural brasileira. Somos uma nação que canta suas alegrias e dores. A canção é contemporânea do nosso processo de construção nacional e da dinâmica que constituiu nossas cidades. A República e o samba são irmãos.

Sentimos coletivamente pela música popular. Ela nos ajuda a compreender o mundo. O impulso que nos leva ao outro, nas relações humanas e sociais, tem no Brasil o consolo da canção. Afeto, razão e política. A música popular brasileira é parte de todo sentimento.

É nesse terreno que a arte de Chico Buarque integra nossa formação. Suas canções se integram a um patrimônio coletivo, de grande riqueza, com o qual dialoga e faz seguir adiante. Chico não seria Chico sem Noel, Pixinguinha e Tom Jobim. Há um inegável reconhecimento da tradição. Mas a chamada MPB não seria a mesma sem ele. Há uma também inegável sensação de aprimoramento.

Seguindo os passos do pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, embalado pelo samba e pela bossa, o jovem artista buscou as raízes do Brasil, como herdeiro de um tempo de certa delicadeza ainda não conspurcada. Assumiu em seguida o papel de principal criador da música de protesto, realizada como um projeto de emancipação.

Em sua trajetória artística e cidadã, combateu a violência, o arbítrio, o extermínio da liberdade e a opressão. Sempre com sentimento de indignação, argúcia política e senso de história, mas com canções feitas sempre para cantar junto ou para fortalecer a calada voz interior. O compositor soube sempre ir além da referência direta aos fatos graves do momento para estabelecer um padrão poético universal.

Como o povo, com o povo e para o povo, sua arte democrática passa a flagrar, ainda nas sombras, o revés do sonho, o momento em que as expectativas se rompem e a lucidez é convocada a realizar seu difícil trabalho. Chico faz com que o Brasil se torne contemporâneo de seus dilemas. Uma nação sempre um passo atrás de seu merecimento. Uma terra de pivetes, fim de feira, periferia afora, meninos que se alimentam de luz, caravanas do Irará.

Qualquer leitura da obra de Chico Buarque é limitada. Fica sempre faltando um pedaço. Sua sensibilidade para o feminino, sua crônica dos subúrbios, seu lirismo amoroso, sua reflexão sobre a canção e a poesia na própria canção e na poesia. A capacidade de desdobrar os estilos, compondo sambas, baiões, valsas, choros e um novo gênero autenticamente brasileiro: a canção buarquiana.

Sua aliança com as melhores causas do nosso período histórico, com braços abertos para as lutas dos irmãos da América Latina, Angola, Portugal dos Cravos, assentamentos rurais. O destemor em enfrentar a censura recusando o cale-se de cara lavada e desviando-se malandramente do confronto inútil com as armas irônicas de Julinho da Adelaide. A aposta na esperança, quando muitos desistiam; a indicação de limites, quando alguns se entregavam ao mais fácil.

Seu domínio dos segredos dos versos, das redondilhas populares ao alexandrino clássico, e mais recentemente, com a verve incontida do rap. Sua evolução musical, em diálogo com a música erudita, educando a sensibilidade desarmada para uma pedagogia sofisticada dos sons e dissonâncias.

Seu prazer em trazer o futebol para a canção e levar a canção a driblar e fazer gols. Seu talento para criar personagens que fazem parte dos tipos humanos que nos cercam como gente de verdade: Geni, Beatriz, Iolanda, Carolina, Januária, Cecília, Iracema. Seu bom humor, sua raiva.

Chico é o maior artista da música popular brasileira. Talvez um dos maiores do mundo, para o bem da cultura brasileira. Sua arte deixa os grandes poetas admirados e os compositores eruditos maravilhados. No entanto, é na junção inexplicável dos dois terrenos – letra e música –  que ele vai além de todos. Suas palavras e sonoridades chegam sempre à terceira margem do rio.

Mas é sempre bom frisar que o artista da canção se confirmou com o tempo um dos mais importantes escritores brasileiros. O que certamente contou para a escolha do Prêmio Camões. O que começou ainda próximo ao universo da música popular, como as peças "Gota d’água" (com Paulo Pontes) "Calabar, o elogio da traição" (com Ruy Guerra), e dois musicais "Roda viva" e "Ópera do malandro", completa-se com o importante conjunto de romances.

"Estorvo", "Benjamim", "Budapeste", "Leite derramado" e "O irmão alemão" receberam vários prêmios, foram traduzidos em muitos idiomas. Em alguns países Chico Buarque é conhecido como o autor de "Budapeste" e há quem se surpreenda ao saber que se trata de um compositor popular. Os livros ganharam o afeto dos leitores e a admiração de escritores como José Saramago e Raduan Nassar, e de críticos como Antonio Candido e Roberto Schwarz.

Jornalistas não aceitam a evidência. Padecem da inesgotável falta de imaginação em achar que tudo precisa ser explicado. Há coisas que não são traduzíveis em palavras comuns e argumentos racionais. Como a folha seca, de Didi, um lance que rompe com todas as expectativas e até mesmo com a lei da gravidade.

Depois de chutada, como quem recebe uma carícia, a bola sobe e desce em velocidade variável, com retardos e aceleramentos ditados pelo acaso. O tempo não funciona de maneira linear, o peso do objeto parece se alterar e o desejo se torna a força determinante depois que cessa a ação direta sobre a pelota. Como a folha que cai de uma árvore que recebe o sopro gentil de um vento de outono. A beleza não está no resultado, mas no caminho poético.

Como uma canção de Chico Buarque.
João Paulo Cunha
É jornalista. Após 18 anos como editor de Cultura do jornal Estado de Minas, pediu demissão quando foi impedido de escrever sobre política na coluna que assinava semanalmente.
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Questão Brasil - 09/04/2019

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